A maior e mais longa pesquisa sobre uma tribo
indígena já realizada registrou desde os rituais até o comportamento
sexual dos índios canelas.
Um americano, antropólogo, com quase 90 anos, é o responsável pelo
maior e mais longo estudo sobre os índios canelas, do Maranhão. Ele
registrou mais de 50 anos da vida na aldeia. Até o comportamento sexual
dos índios foi pesquisado.
Nos passos da coreografia tribal, um homem branco de 87 anos
usa bengala para dançar. Porque o herdeiro de uma das maiores fortunas
da Califórnia largou tudo para viver entre os índios do Brasil? “Porque
encontrei outra coisa melhor para fazer. Muito melhor. Sempre me
dediquei a antropologia. Uma vez que encontrei a antropologia, não tinha
outra coisa para fazer”, resume o antropólogo Bill Brocker.
Filho de banqueiro, ele abandonou os negócios da família nos
EUA e foi estudar os índios canelas, uma etnia do grupo timbira, que
vive na aldeia Escalvado, no município de Fernando Falcão, no centro sul
do Maranhão.
Ele é provavelmente também o antropólogo mais idoso do mundo
fazendo pesquisa de campo. A foto do índio Francisquinho Tephot foi
tirada pelo próprio Bill em 1957, quando esteve no Brasil pela primeira
vez. Francisquinho Tephot, que aparece na foto aos 18 anos, nunca tinha
vista o um branco antes. Foi da estranheza a uma amizade que já dura 54
anos.
Anfitriões perfeitos, os índios canelas adoram receber. O
visitante é adotado por uma família e recebe logo um nome indígena. A
família de Bill é a mesma a mais de cinco décadas. A irmã indígena
Dominga o recebeu em 1957 e cozinhou para ele.
Bill relata o primeiro almoço na aldeia: “Eu sentei no chão,
porque só tinha esteira, mas não tinha colher nem garfo. Eu comi com os
dedos, entre eles. Na mesma família”.
Hoje, sentado a mesa, comendo no prato e usando talheres,
Bill faz das mudanças culturais da aldeia a base de uma impressionante
pesquisa realizada com a ajuda dos índios.
Bill pediu a eles que escrevessem diários, que registrassem o
que acontecia em volta. Os diários começaram 1964. “Comecei a escrever
as coisas, tudo que passa pelo pátio, organização lá dentro da aldeia”,
conta um índio. E continuam a ser feitos ate hoje.
É o maior e o mais longo estudo que se tem notícia sobre o
cotidiano de uma única aldeia. A rotina da comunidade descrita no diário
contempla aspectos da vida publica, mas principalmente da vida pessoal
dos índios e do comportamento das famílias.
O arcaico e o moderno convivem lado a lado em um jogo de
contradições. As crianças assistem desenho animado dentro da maloca de
palha. O modo tradicional de ornar o corpo ganha símbolos inesperados. E
a antiga economia tribal, baseada em trocas, no escambo, mudou
inteiramente com a chegada do dinheiro.
Os diários também revelaram a Bill o comportamento sexual dos
índios. Havia ocasiões em que o sexo fora do casamento era praticado
por todos, sem que houvesse condenação moral. O rígido controle das
lideranças evitava conflitos.
“Tinha ciúmes, mas os velhos sempre abafavam, as “tias”
abafavam. É muito contra a lei deles ter ciúmes, mas o ser humano tem
ciúme”, explica o antropólogo.
Ao longo dos anos, os diários foram registrando uma mudança
nesse comportamento. “Lá no passado, eles tiveram uma liberdade muito
grande. Ninguém culpava ninguém. Amou, amou. Gostou, gostou. Hoje já
mudou completamente. Por quê? Porque parece que nós vimos vocês [homens
brancos] e porque largar a mulher leva culpa. Nunca termina essa culpa”,
avalia Raimundo Beato Padset.
Francisquinho é um dos principais colaboradores de Bill. Com a
velha máquina que o antropólogo lhe deu, registrou mais de 30 anos de
mudanças. “A gente escreve coisas como se fosse um jornal”, conta. A
vida lá fora ia para a lauda de Francisquinho. Inclusive as influências
indesejáveis. “Hoje, o jovem quer ser branco, não quer mais deixar
cabelo crescer”, lamenta.
Mesmo assim, os canelas mantêm um complexo repertório de
rituais. Cerimônias de provação, como as corridas de tora. Ritos de
passagem da idade adulta. As festas que varam a noite sem que ninguém
saia da roda até amanhecer. É como se a preservação dos rituais servisse
para contrabalançar a mudança cultural.
Há traços do temperamento dos canelas que jamais mudaram. A
habilidade para resolver conflitos é expressa em ações, gestos. O que
mais preocupa o antropólogo são a saúde e a educação dos índios. A
escola da aldeia esta em péssimo estado.
Os originais da pesquisa vão para instituto onde Bill
trabalha. O Museu Nacional de História Natural de Washington. Mas as
cópias de tudo o que foi produzido pelos diários estão sendo enviadas ao
museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará.
A licença para pesquisar no Brasil está acabando. Pela
primeira vez, Bill está pensando em não renová-la. “É possível que seja
minha última visita. Não vou dizer que é certo. Mas é mais provável que
eu volte só para visitar”.
Como então o mais canela dos antropólogos gostaria de ser
lembrado por seus parentes indígenas? “Como a pessoa que morava entre
eles, gostava deles e sempre aprendeu muito com eles”, resume.
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