´Meu único desejo é um pouco mais de respeito para o mundo, que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele" Lévi Strauss

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Liberdade, Igualdade e Fraternidade



Que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo?
Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante.
Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão., qual foi
o resultado? haver escravos em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o que parece ser, isto é, se em
toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado
à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro.
Cobrisse-se o globo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o
ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada
e de outro leito além do dos gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs
e Tamerlões vassalos sendo os próprios filhos, os quais seriam bastante
virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de quem gozam os quadrúpedes aves
e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo
em que ninguém pensaria: para que servidores se não tivésseis necessidade de
nenhum serviço?
Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo
de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter seu vizinho menos forte
que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado suas
medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância.
Todos os homens seriam necessariamente iguais, se
não tivessem precisões. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem
ao homem. O verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência. Pouco importa
chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é servir um
ao outro.
Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas
famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar
a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer seus braços à
rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é
fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos.
Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade
humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos.
Essas duas classes se subdividem em mil outras, essas outras em sem conta de
nomes diferentes.
Nem todos os oprimidos são absolutamente
desgraçados. A maior parte nasce nesses estado, e o trabalho contínuo impede-os
de sentir toda a miséria da própria situação. Quando a sentem, porém, são
guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos
camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde, todas
essas guerras desfecham com a submissão do povo, porque os poderosos têm
dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não
se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre
subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo homem nasce com forte inclinação para o
domínio, para a riqueza, prazeres e sobretudo para a indolência. Todo homem,
portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos
outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer, ou
pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes
disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou
professores de teologia não se invejarem.
Tal como é, impossível o gênero humano subsistir, a
menos que haja infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que
um homem satisfeito não deixará sua terra para vir lavrar a vossa. E se
tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vô-lo
fará. Igualdade é posi a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os
homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir os
cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é
visivelmente: Este país é tão mau e tão
mal governado que vedamos a todo indivíduo dele sair, por temor que todos os
desertem. Fazei melhor: infundir em todos os vossos súditos o desejo de
permanecer em vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir.
Nos íntimos refolhos do coração, todo homem tem
direito de crer-se de todo ponto igual aos outros homens. Daí não segue dever o
cozinheiro de um cardeal ordenar a seu senhor que lhe faça o jantar. Pode todavia
dizer: “Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele, chorando; como eu, ele
morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimônias. Temos ambos as mesmas
funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma eu virar cardeal, e meu senhor, cozinheiro,
tomá-lo-ei a meu serviço.” Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o
grão-turco não se assenhorar de Roma, o cozinheiro precisa cumprir suas
obrigações ou toda a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem
ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu, mas a quem
repugne o ser em toda parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem
que veja que muitos monsignori não
têm mais ciências, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade
de esperar em suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte.
Por Voltaire - François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (Paris, 21 de novembro de 1694 — Paris, 30 de maio de 1778), foi um escritor, ensaísta, deísta e filósofo ...

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gratidão pelo comentário!!! Paz profunda!!!